Com ferramentas de IA e nova lei para regular plataformas de apostas online, Brasil busca combater escândalos e fraudes que já infectaram até divisões de base do futebol
Acumulam-se as polêmicas que envolvem os sites de apostas esportivas no Brasil, modalidade de jogo online que, num intervalo de tempo de poucos anos, tornou-se um fenômeno de engajamento, de influência – eles patrocinam os times de futebol de maior torcida no país, por exemplo – e de movimentação de recursos. De olho nesses recursos, o governo federal apresentou, no ano passado, um projeto de lei para regular a atividade desses sites. O PL 3.623/2023 tramitou com velocidade inaudita e foi aprovado no penúltimo dia de 2023, dando origem à lei federal 14.790. Essa lei estabelece regras, determina a necessidade de taxação e até determina a destinação dos recursos, que segundo previsões do Ministério da Fazenda podem chegar a R$ 2 bilhões em 2024.
Embora sua aprovação tenha sido saudada, inclusive pelos empresários do setor de apostas, como um avanço no combate às possíveis fraudes, hoje a mais importante ferramenta para detectar falcatruas são os algoritmos de Inteligência Artificial. Nos Estados Unidos, o remédio tem sido a contratação de empresas especializadas em buscar falhas nas integridades dos processos. Profissionais com experiência em analisar fundos de investimentos em Wall Street para erradicar negócios suspeitos, por exemplo, estão agora migrando para a análise de apostas esportivas. Uma das empresas contratadas pelas grandes ligas é a US Integrity, com sede em Las Vegas. No caso da NCAA (a entidade que regula o basquete universitário norte-americano), os sistemas de vigilância eletrônica disparam de 15 a 20 notificações para os operadores de apostas esportivas e escritórios reguladores por mês. A competição abarca um total de 363 times na primeira divisão.
Também no Brasil esses sistemas de alerta baseados em Inteligência Artificial estão sendo cada vez mais importantes. “Em 2023, apenas no mercado brasileiro, foram enviadas às casas de apostas que usam o nosso sistema 78 notificações de atividades suspeitas”, explica Guilherme Buso, líder de esportes e apostas para o mercado brasileiro da empresa Genius Sports, especializada em tecnologia digital. Desse total, 40 eventos receberam uma análise mais detalhada. No ranking de países onde está disponível a tecnologia para esse tipo de análise aprofundada, o Brasil aparece como o primeiro em número de alertas.
Operando a partir de padrões preestabelecidos que mapeiam a conduta dos apostadores, os algoritmos conseguem identificar, em tempo real, quando algo muito fora da curva, em termos de mudanças de comportamento, ocorre. Essas guinadas servem como indício de que algum resultado merece ser mais bem investigado. “Se durante o jogo, por exemplo, muda o time favorito devido a um ou mais gols que ocorrem em momentos-chaves, isso faz parte do processo. A questão é quando uma grande quantidade de apostas começa a ocorrer ao mesmo tempo, em um jogo único, sem motivo aparente”, explica Buso.
O executivo esclarece que, em muitos casos, os alertas não significam que exista realmente algo ilícito ocorrendo por trás daqueles movimentos dos apostadores. “Perceber uma anomalia em uma série de dados históricos não chega a ser uma novidade. Os chamados modelos autorregressivos nos permitem fazer isso há bastante tempo,”, diz Leopoldo Lusquino Filho, professor do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp em Sorocaba. “Porém esses sistemas que usam machine learning e Inteligência Artificial trouxeram uma inovação. Nas soluções mais antigas, você tinha que saber o que estava procurando. Ou seja, você precisava ter uma ideia, mais ou menos, de qual era a anomalia. Já os modelos atuais permitem o rastreamento das anomalias nos dados mesmo quando você não conhece muito bem o comportamento delas”, diz.
IA detecta padrões que a mente humana não identifica
A pesquisa de Lusquino busca identificar eventos climáticos extremos e desenvolver um modelo que ajude no monitoramento de reservatórios hidrológicos, como os do rio Sorocaba. Para isso, ele busca encontrar “pontos fora da curva” nas séries históricas de dados das enchentes na região de Sorocaba. Ele diz que, se antes a tecnologia disponível possibilitava analisar os dados e os atributos atrelados a eles, hoje se pode estudar correlações entre cada um dos atributos. “Isso facilita identificar quais são os padrões, e o que é algo fora do comum. Muitas vezes é possível detectar, inclusive, informações que fogem da cognição humana. Ou seja, são padrões que o raciocínio humano não conseguiria captar sozinho”, afirma o docente da Unesp.
No caso do futebol, há sistemas de monitoramento que avançam sobre questões ainda mais complexas de uma partida. Por meio do vídeo completo de um jogo, podem-se detectar erros dos jogadores que podem estar atrelados ao sucesso de uma aposta suspeita –um gol contra bizarro, por exemplo. Decisões não triviais de árbitros e treinadores também são rastreadas com base em análises de dados mais robustas. “Isso não é hipotético. Esses sistemas estão operando agora, inclusive no Brasil, durante os jogos”, diz Buso.
Outro desdobramento desses sistemas de busca inteligente é a possibilidade de aplicá-los para diferentes fins. Todos os mecanismos de movimento empregados na movimentação de um robô quadrúpede, por exemplo, podem ser extrapolados para o caso de um robô bípede. E mesmo um modelo sofisticado usado para detectar anomalias climáticas pode, quem sabe, servir também para encontrar padrões fora da curva em exames cardíacos.
Leia a íntegra da reportagem no Jornal da Unesp.