Estudo analisou panorama do transporte de passageiros por motocicletas em quatro capitais brasileiras
A consolidação e expansão de serviços de transporte de passageiros por motos, o aumento na frota de motocicletas em cidades brasileiras e os desafios vivenciados por motociclistas, passageiros, motoristas e pedestres em relação aos serviços de mototáxi e transporte por aplicativo foram o foco de uma pesquisa sobre um cenário que demanda atenção no Brasil. Tudo isso está em um estudo inédito com recortes sociais, cruzamento de dados, entrevistas e análises de várias fontes. O trabalho foi feito de abril de 2023 a março de 2024 pelo Instituto Cordial, a pedido da Uber, em que pesquisadores levantaram dados nacionais e focaram os estudos em quatro capitais – São Paulo, Rio de Janeiro, Manaus e Fortaleza.
“Nosso foco aqui foi fazer uma abordagem ampla sobre os riscos da circulação de motocicletas com passageiros e aprofundar a análise do cenário da segurança do mototáxi em regiões distintas do Brasil. Os serviços de transporte de pessoas e mercadorias por moto podem ser alternativas de trabalho digno, inclusão social e geração de renda se bem estruturados. Contudo, há uma grande preocupação sobre a segurança das pessoas nesses serviços, dado o aumento dos sinistros de trânsito com motociclistas na última década no país. Considerando que a circulação de motocicletas com passageiros é permitida no Brasil, analisar e compreender esse cenário é fundamental. Só assim podemos ter ações públicas e privadas baseadas em evidências que garantam que esse modo de transporte seja seguro. E o estudo traz uma série de recomendações nesse sentido”, diz Luis Fernando Villaça Meyer, diretor de operações do Instituto Cordial e supervisor do estudo.
O transporte de passageiros por moto no Brasil
Em um contexto urbano marcado por preocupações crescentes com a segurança viária, o serviço de transporte de passageiros por motocicleta, conhecido como mototáxi, emerge como um tema de significativa importância. Esse serviço, já estabelecido há anos em diversas cidades brasileiras, incluindo pequenos e médios municípios e algumas capitais, ganhou destaque recentemente com sua incorporação por plataformas de transporte de passageiros.
O estudo destaca que as motocicletas possuem o diferencial de transitar com eficácia por áreas urbanas densas, alcançando locais inacessíveis ao transporte coletivo e veículos individuais, como bairros afastados, vias estreitas e regiões com topografia desafiadora — condições comuns em áreas periféricas e carentes onde muitas vezes o transporte público não chega.
No entanto, a expansão desse serviço traz atenção para a segurança viária. A alta incidência de sinistros de trânsito envolvendo motociclistas já constitui uma fonte de preocupação para autoridades e organizações civis. A intermediação do serviço privado de transporte de passageiros por motocicletas por empresas de tecnologia reforça a necessidade por políticas e programas de segurança que protejam tanto os motociclistas e passageiros quanto outras pessoas nas ruas. O estudo reforça, assim, a necessidade de um acompanhamento rigoroso com base em dados e a implementação de medidas preventivas para assegurar a segurança e a integridade dos usuários com base na abordagem dos “Sistemas Seguros de Mobilidade”.
Pedestres historicamente eram os usuários que mais se envolviam em sinistros de trânsito. Porém, nos últimos anos, as ocorrências envolvendo motociclistas começam a aumentar de forma preocupante. “Em 1996 os óbitos de motociclistas representaram 2% das mortes no trânsito do Brasil e em 2021, esse índice atingiu 34%. Enquanto as tarifas do transporte público permaneceram crescendo, a motocicleta veio como uma alternativa muitas vezes mais acessível, ainda mais para a população mais vulnerável social e economicamente, que pode utilizá-la inclusive como fonte de renda. A questão não é, então, apenas de segurança viária, mas também social e de acesso à cidade”, destaca Luis Fernando.
Assim, o estudo “Segurança Viária e Transporte de passageiros em motocicleta em quatro capitais do Brasil: Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus”, objetiva entender a multiplicidade de fatores que compõem este cenário para planejamento de ações e tomada de decisões a fim de promover melhorias na segurança viária e outras medidas que envolvem o serviço. A coleta de dados se deu de três formas: por observações de campo, entrevista em profundidade e realização de grupos focais. Em linhas gerais, é possível identificar cinco eixos sobre os quais a análise dos dados coletados se assentou: respeito às leis e normas de trânsito, comportamento do passageiro, condições das vias, questões urbanas (com destaque para a criminalidade e a falta de segurança pública) e a relação dos aplicativos com os trabalhadores.
“A segurança é uma prioridade para Uber e investir em pesquisas como essa conduzida pelo Instituto Cordial é fundamental para entender fatores de risco e tomar ações que possam reduzir os riscos no trânsito, especialmente para veículos menores, como moto”, afirma Yuri Villacorta, gerente de comunicação para assuntos de segurança da Uber no Brasil. “A empresa já realiza diversas ações educativas para motociclistas parceiros e usuários, implementa recursos de segurança, e parcerias com o Poder Público, mas entender a realidade de diferentes cidades ajuda a guiar um futuro ainda mais promissor”, completa.
Confira alguns achados do estudo
Por mais que normalmente se fale sobre a segurança do motociclista de forma geral e indistinta, o estudo mostra que os fatores de risco associados à condução com passageiros possui diversas especificidades em comparação com outros usos da motocicleta, como por lazer ou para delivery;
Foi muito debatida a questão do “bom garupa”, aquele passageiro que sabe se portar em cima de uma motocicleta, afinal, o passageiro é parte da condução. O comportamento dos passageiros e a forma como ele influencia na segurança mostraram-se aspectos essenciais para pensarmos a segurança viária nessa atividade.
Diferente de outros modos de transporte motorizado, em que o passageiro é apenas alguém sentado confortavelmente em seu assento, na motocicleta ele assume o papel de copiloto. Alterações no estado psíquico do passageiro (uso de drogas lícitas ou ilícitas), movimentos bruscos, falta de habilidade para acompanhar o piloto, desatenção no trajeto etc., são situações extremamente sensíveis no contexto do transporte por motocicleta. Ou seja, o passageiro é ativo em seu papel durante o deslocamento, de forma que ele também possui responsabilidade pela segurança de ambos sobre a moto.
Se, por um lado, este é um serviço que precisa ter uma atenção especial para o passageiro e, talvez, alçá-lo à posição de copiloto, por outro, é necessário pensar em especificações para os veículos que podem cumprir este trabalho. Ou seja, existem limites de altura (pelo equilíbrio) e peso (pela capacidade) que uma motocicleta pode aguentar, além de equipamentos de proteção e alças de segurança para o garupa.
Transportar passageiros em motocicleta é uma atividade bastante concentrada, nas cidades pesquisadas, em públicos de classe média baixa ou mesmo de classe baixa. Essas pessoas tendem a habitar locais onde a oferta de serviços públicos e a infraestrutura urbana estão menos presentes ou mesmo ausentes.
Em geral, e diferentemente de outros modos de transporte de passageiros, o serviço de transporte por motocicleta é utilizado principalmente por mulheres, que costumam ter um cotidiano de viagens menos pendular, dentro do qual são inseridos destinos para a realização de atividades que cumprem a reprodução social familiar. A flexibilidade, o baixo custo e a rapidez do transporte por motocicleta parecem ser características relevantes para esse público;
A observação participante em Manaus identificou que diversas mulheres andavam com uma touca higiênica em sua bolsa para vesti-la antes de colocar o capacete ou até andavam com um capacete próprio. A questão higiênica se impõe e, por ora, a legislação pouco se atentou a isso, apontando apenas para a necessidade do uso do capacete.
Um aspecto observado no estudo e interessante de se apontar como inibidor de condução perigosa é a própria geometria da via e o relevo. Se, em Fortaleza, uma curva fazia com que os veículos reduzissem a velocidade, no Rio de Janeiro, é a dificuldade de trafegar em função da inclinação, das condições e do tipo de pavimento que fazia com que a cautela se sobrepusesse à pressa.
O investimento em fiscalização traduziu-se em maior respeito às leis de trânsito por parte dos motociclistas nas cidades pesquisadas. Especialmente no estudo de caso de Fortaleza, observou-se que as leis de trânsito foram respeitadas onde havia fiscalização e, em outro local similar, mas sem fiscalização, foi evidente o desrespeito à legislação e as situações de risco geradas a partir de comportamentos inapropriados (avançar o farol vermelho, parar em cima da faixa de pedestres etc.);
A flexibilidade da moto como veículo que pode se acomodar a qualquer espaço também é um elemento bastante importante. Nesse sentido, o estudo mostrou que o transporte de passageiros em motocicletas permite que pessoas acessem locais por meio de regiões com arruamento em condições adversas, pelas quais o transporte público também não se ramifica e não acessa.
A ausência do Estado, associada a uma sensação de impotência dos condutores e de falta de representatividade da categoria, fez com que alguns dos entrevistados fizessem parte de grupos organizados de motociclistas. Esses grupos se formaram tanto para que eles pudessem se unir e se proteger no trânsito (tanto em termos de segurança viária como de segurança pública), como para que eles pudessem buscar instâncias políticas e jurídicas para brigar por direitos. O público pesquisado deseja maior compartilhamento de riscos por parte dos aplicativos.
Em todas as cidades pesquisadas, foram mencionados casos nos quais os motociclistas precisam mudar a conduta de circulação em função de regras estabelecidas pelo crime organizado. Trafegar sem capacete e tirar o celular do suporte são exigências corriqueiras. Por outro lado, a exposição ao risco de ser assaltado em regiões perigosas da cidade também afeta o cotidiano desses trabalhadores. Evitar circular e buscar passageiros em determinados locais, como vielas e ruas com pouca iluminação, são comportamentos comuns.
O estudo ainda traz recomendações pela segurança viária dos mototaxistas direcionadas para as gestões municipais e para as plataformas de aplicativos. As recomendações ao poder público dizem respeito especialmente à legislação, a questões normativas e de infraestrutura, além de reforçar a fiscalização, que se mostrou efetiva para que motociclistas respeitem as leis de trânsito.
Além disso, destacou-se a disparidade no volume e na qualidade de dados disponíveis ou disponibilizados de sinistros de trânsito envolvendo motociclistas com passageiros em cada cidade. Neste sentido, reforça que é fundamental que a coleta e publicação de dados públicos de segurança viária aconteçam de forma sistemática e padronizada, com periodicidade, no mínimo, anual, para que haja monitoramento adequado do cenário de cada município e que medidas preventivas e corretivas sejam tomadas o quanto antes.
Já as recomendações às plataformas são relacionadas especialmente às condições de trabalho e assistência ao motociclista, treinamento mínimo e conscientização do passageiro, programas de formação para motociclistas, equipamentos de segurança, oferta de seguro para cobrir eventuais sinistros e outras emergências aos motociclistas enquanto estiverem em serviço, incluindo sinistros com passageiros, dentre outras.
Enquanto as recomendações tendem a enfrentar os problemas observados nas grandes cidades estudadas, dadas as suas especificidades, essas também poderiam ser sugeridas para boa parte dos centros urbanos brasileiros. O estudo conclui que ao invés de demandar a extinção do serviço de transporte de passageiros por motocicleta sem considerar seus aspectos sociais e de acessibilidade, a solução passa por compreendê-lo em seu contexto, garantindo o acesso ao transporte coletivo e melhorando as condições de segurança do transporte de passageiros por motocicletas.
Sobre o Instituto Cordial:
O Instituto Cordial é um centro de articulação e pesquisa independente (Think and do Tank) dedicado à implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Eleita uma das 100 empresas mais influentes em mobilidade em ranking elaborado pelo Mobilidade Estadão, o Instituto trabalha com ciência de dados, inteligência territorial e articulação intersetorial para fortalecer redes e basear tomadas de decisão públicas e privadas em dados e evidências.